Artigo da jornalista Tatiana Dias, editora-executiva do site The Intercept Brasil:
Às vezes, ao tomar uma decisão editorial, a resposta aparece de forma intuitiva. “Suportaria ficar mais um pouquinho?”, frase escolhida para intitular a reportagem de 2022 sobre a menina que engravidou aos 10 anos e teve seu direito ao aborto negado, foi um desses casos.
Entre tantas frases destacáveis da juíza e da promotora do caso à menina, foi essa que ficou ecoando na minha cabeça. Depois, escolhida para cravar o título.
Foi só ao ler um texto de Renata Izaal, jornalista do jornal O Globo, publicado dias depois da reportagem, que elaborei o meu raciocínio sobre a escolha daquela frase. Izaal escreveu que todas nós, mulheres, já ouvimos perguntas parecidas. Sempre fomos convencidas a aguentar mais.
“A mulher suporta ficar mais um pouquinho em situação de violência doméstica para preservar a família, para os filhos crescerem”, escreveu Izaal. “Suportar sofrer mais um pouquinho, aguentar mais um tanto de dor, chorar escondida para não incomodar”, continua. “A juíza só reproduziu a ordem patriarcal que aprisiona e adoece mulheres há tempos”. Somos criadas para ser resilientes. Foi a cena que o Brasil todo viu naquele vídeo.
Agora, ao ler a justificativa do perverso PL 1904/24, voltei àquele junho de 2022.
O caso da menina grávida em Santa Catarina após um estupro, acredite ou não, foi um dos listados na justificativa do projeto. A proposta ficou conhecida como PL do Estupro por prever para a mulher que aborta uma pena maior do que a do estuprador.
“A imprensa passou a noticiar sobre a ‘desumanidade de uma juiza que havia induzido uma menina de 11 anos a desistir do aborto'”, afirma o projeto de lei, de autoria do deputado federal pelo Rio de Janeiro Sóstenes Cavalcante, do PL. O texto do projeto diz que a juíza Joana Ribeiro Zimmer, que julgou o caso de SC, “tinha razão”.
A menina estava grávida de 20 semanas quando o aborto legal foi negado pelo hospital universitário. Na 22ª semana, Zimmer também negou o procedimento, e equiparou o aborto da menina a um homicídio. A juíza determinou que a menina ficasse em um abrigo por mais de um mês, longe da família, para impedi-la de realizar o procedimento. Quando a nossa reportagem foi publicada, em 20 de junho de 2022, ela já estava na 29ª semana de gestação.
Na ocasião, o Ministério Público Federal se manifestou, exigindo que o hospital garantisse a realização do aborto nos termos da lei. O procedimento foi feito no dia 22 de junho, dois dias depois da publicação da nossa reportagem em parceria com o portal Catarinas.
Um ano depois, em 2023, o Ministério Público de Santa Catarina publicou uma cartilha sobre interrupção humanizada da gravidez sem nenhum limite gestacional e recomendando a assistolia fetal em casos de gestação avançada. Como preconiza a Organização Mundial da Saúde, vale lembrar.
Mas Sóstenes Cavalvante e o resto da bancada que assina o projeto viram isso como uma ameaça.
“Os Ministérios Públicos, em todo o Brasil, provavelmente se unirão para forçar os hospitais que realizam procedimentos de aborto a seguirem estas recomendações. Qualquer gestante poderá realizar um aborto, em qualquer idade gestacional, bastando afirmar haver sido vítima de violência, sem necessidade de apresentar provas ou documentos. Que poderia acontecer, depois disto, nesta sequência?”, diz a justificativa do projeto.
O aborto é crime no Brasil. Mas, desde 1940, é permitido em casos de estupro e risco de vida à mulher – o mínimo. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu descriminalizar o aborto também em casos de anencefalia, condição que inviabiliza a vida extrauterina.
Os abortos tardios são minoria entre as interrupções de gestações no Brasil. Em meninas com menos de 14 anos, qualquer relação sexual configura estupro – portanto, uma eventual gravidez estaria prevista nas exceções da lei. Não existe consentimento em uma relação sexual com criança. Os número gritam: 60% das vítimas de estupro no Brasil têm menos de 13 anos, segundo dados de 2021 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Nesses casos, o aborto se enquadra em dois casos previstos na lei: estupro e risco de vida à mãe, já que o corpo de uma criança não está preparado gestar e parir. Na prática, no entanto, o procedimento chega a poucas que engravidam após esse abuso: menos de 100 por ano. Ao mesmo tempo, 26 meninas menores de 14 anos têm filhos por dia no Brasil. Por dia.
É frequente que o aborto tardio, ou seja, com mais de 22 semanas, seja o caso de meninas com menos de 14 anos, que têm menstruação irregular e demoram para notar mudanças no corpo. Foi o caso da menina de Santa Catarina. Da menina do Piauí. De tantas outras.
O Código Penal simplesmente não estabelece um limite gestacional. O Ministério da Saúde tem um manual de recomendação. Recomendação.
Nossa lei não diz que acima de 22 semanas é homicídio, e nem que precisa ser necessariamente uma antecipação do parto. A legislação é clara: nenhuma mulher (ou criança) brasileira precisa carregar o filho de um estuprador, seja lá qual for a idade gestacional quando ela procurar o serviço de aborto legal.
Como li nesta semana, o aborto tardio só acontece quando todos os mecanismos de proteção anteriores falharam. Se o Brasil ficou chocado com o caso de Santa Catarina, a investida do PL do Estupro mostra que nenhum direito é garantido, e que há muita gente querendo que aquela situação terrível seja a regra entre as crianças que precisarem do procedimento após terem sido violentadas.
O PL do Estupro só não avançou por causa da reação feminista. Se dependesse do governo Lula e do pragmatismo estúpido de quem joga essa pauta no rol de “costumes”, teria passado. Porque nós seguimos suportando, pouquinho a pouquinho. Precisando resistir sozinhas a cada investida misógina do Congresso que instrumentaliza os nossos corpos para capitalizar politicamente, e podendo contar muito pouco com os outros poderes.
Suportamos mais um pouquinho desta vez. Até quando?